Práticas de pertencimento no Rap:
Uma análise do discurso da imagem do clipe Vida Loka II
Enquanto no discurso político a questão do assistencialismo do Estado às classes mais baixas[1] alimenta o debate entre os representantes de ricos e pobres, e parte dos beneficiários das ações governamentais residentes nas periferias das grandes cidades aguardam passivamente sua inclusão, por preguiça, ignorância ou comodidade, de outro lado inúmeras vozes buscam reconhecimento em esferas sociais e econômicas diferentes da sua, seja em busca de ascensão financeira, seja por status. Esse processo de inclusão no entanto, apesar de tentar eqüalizar diferenças e desigualdades (a primeira antropológica, a segunda sociológica), mantém a dependência do incluído à aceitação pelo outro, seja por piedade, por direito, ou por favor. O papel de sujeito continua naquele que permite a entrada de um estranho em sua esfera; já o outro, objetivado, realiza-se em sua meta, e, sentindo-se incluído, ameniza o discurso de reivindicação, pois sente-se atendido. Na inclusão pode ser visto ainda um ato cínico por parte do sujeito, que se apropria do discurso do incluído, o repete exaustivamente, através dos media, até seu esvaziamento (ao tornar o discurso reivindicatório em algo aparentemente natural) e o oblitera gradativamente, eliminando o potencial crítico por ele assinalado[2].
O movimento punk dos anos 80 é um exemplo da agressividade, da conscientização das desigualdades, da música ácida de protesto e reivindicação, que viu exposto seus símbolos radicais em grandes butiques, sua música tocar em templos burgueses, seus ícones dissolvendo-se ante os prazeres da fartura proporcionada pelo sucesso. Dessa época pode ser vista, ainda, uma ira simulada (anacrônica) pelo vocalista do grupo musical Ratos de Porão, João Gordo, um estandarte da rebeldia dos anos oitenta, em seus atuais programas da MTV. Não desejamos entretanto nos prender ao conceito de cinismo, mas sim aplicá-lo como um mecanismo antagônico aos interesses do nosso objeto; deslocarmo-nos-emos portanto para a possibilidade da efetivação do sentimento de pertença no clipe de Rap (Rhythm and poetry).
O mercado fonográfico mostra-se bastante competente quando identifica determinado fenômeno social apresentado através da música, e o transporta para os mass media de forma a moldá-lo e a adequá-lo aos padrões morais vigentes. Grupos como o Planet Hamp, Charlie Brown Jr. e o cantor Gabriel o Pensador são fortes exemplos desse remodelamento. O Rap e o funk, nos moldes brasileiros, também passam por percurso semelhante. Mas um grupo seleto de seus expoentes consegue emplacar independentemente das grandes gravadoras, podendo manter-se fiel ao seu discurso, ainda que lute acirradamente contra o esvaziamento de suas reivindicações pela apropriação e reconfiguração cínica dos grandes conglomerados através de ícones como os citados no presente parágrafo. O vídeo-clipe Vida Loka 2, do Racionais MC, demonstra em poucos minutos o retrato do trânsito dessa resistência.
Câmera objetiva: um curta no clipe
Na seqüência inicial um terceiro observa a provocação de marginais a garotos pobres, que o são a priori por não ter um par de tênis All Star. A humilhação das crianças traz à tona o momento, na década de 80, no qual tem início o golpe definitivo do capitalismo no Brasil: a massificação da necessidade do consumo de marcas enquanto facilitador do sentimento de pertença (vale lembrar que a abertura econômica nos anos oitenta permitiu a importação de muitos símbolos norte-americanos, desde tênis até equipamento eletro-eletrônicos). Isso se verifica na seqüência toda, através do rádio “portátil” que os marginais carregam, abertamente a partir do uso do calçado de marca até, veladamente, o momento em que a mãe de um dos pequenos inocentes o enquadra dentro da moral evangélica (naquele período a religião em “marcas” era um fenômeno embrionário). Os passos em close mostram o chão de barro a sujar pés calçando chinelos, mãos carregando sacolas; de outro lado, mesmo bandida, a mão carrega o entretenimento, em close estão os pés vestidos sedutoramente. O registro fotográfico em câmera subjetiva feito por um turista solitário na favela (definitivamente deslocado do contexto) demonstra os ascendentes em contraste com a escória estagnada, um conflito entre duas morais: a capitalista e a religiosa. Este é o fio condutor do clipe. A humilhação continua ainda no momento seguinte, quando um dos garotos pobres, atraído à gôndola de uma loja pela beleza do All Star, é ignorado por uma balconista pelo fato de ser pobre, sendo posteriormente expulso da frente da loja por um segurança. A inclusão, a possibilidade de se inserir através de bens de consumo, de ser aceito, permeia o início do discurso do clipe.
Já na transição para 2004 apresenta-se uma aparente evolução do Capão Redondo (ou ao menos como ele se objetivaria). O que era uma favela de tábua, ou configurada em casas simples de alvenaria, aparece agora abrilhantado “pelo” grafite ao fundo, recortado sob uma reunião de jovens raperes em seus carros tunados[3], que se cumprimentam ao som de taças de champagne. O Racionais, com um viaduto ao fundo fala ao espectador com a expressão de ódio característica. Aponta a evolução do local, agora asfaltado, para contradizê-lo imediatamente na seqüência seguinte: barracos continuam ao fundo recortando um conjunto de personagens do movimento, da comunidade, cantando em coro sua realidade crua, sem as fantasias dos belos raperes de butique, sem o glamour “do” grafite com champagne. Estas personagens olham para o espectador, cantam para ele seus versos duros, avisando que a dificuldade da vida a ser vencida não está na esmola da inclusão. Não são vítimas, são agentes. Suspeitos, observam e são observados, amedrontam e têm medo.
Na seqüência posterior o mundo ideal se apresenta na família feliz, a passeio sobre um gramado esplêndido. Universo idealizado contrapondo-se, ao longo de toda a narrativa, à realidade do chão batido. Quem faz parte desse universo, parece-nos gritar o Racionais, muda quando quiser, por bem ou por mal. O direito-de-ter deve ser de todos, e isso no entanto é negado, o recalque manifesta-se em quem o percebe, e através dessa figura freudiana o pertencimento[4] realiza-se enquanto ação pelo direito de ter direito, se fazendo presente pela objetivação de si: normalmente comemora-se com o possível (momento do clipe em que se mostra uma humilde troca de presentes de Natal). Outros, entretanto, explodem, rompendo o cabresto que os regulam dentro da lei. Criam seus próprios direitos, suas próprias normas, sujeitam-se assim às regras externas. A cadeia, então, aparece como um mal necessário para que a família se concretize. A distância não o exclui dos parentes. Reforça, também, a pertença junto aos pares.
Vale salientarmos que na pertença, apesar do grito e da consciência, há a manutenção da ideologia. Apesar das conquistas, da demonstração de poder, a permanência no lugar de onde se é o sujeito gerado torna-se necessária para que não se traiam aqueles que dividiram o mundo entre si. A pertença é um processo evolutivo se comparado com a inclusão, no entanto é estacionário, pois mantém seu sujeito ruminando ódio contra aqueles/aquilo que eles gostaria de ser/ter.
Câmera subjetiva: o que se é
A pertença, a igualdade, o respeito pela semelhança, não pelo medo, vai-se concretizar somente na própria comunidade, na qual todos compartilham bens de consumo (roupas, ouro, prata), arte clássica (quadros, instrumentos musicais como um violoncelo), poder (os gestos de armas e seus bang-bangs). Parecem querer dizer “podemos ter, podemos ser, mas não queremos pena, nem inclusão, conquistamos”; é exatamente isso o que se percebe nos gestos dos aliados (seus olhares de mau e sua permanência em grupo não demonstram amizade, mas sim respeito entre todos) . Querem falar, e essa voz se faz no lugar de origem, para ser ouvida e respeitada, ainda que se tenha que jogar com a regra do jogo dos outros: “
A manutenção ideológica faz-se presente de forma crítica, também, na personagem apassivada pela religião, por exemplo, na seqüência final do filme. Motos velozes, convites para baladas, bens de consumo, nada parece afetar aquele que a Deus se submete. Não se sabe quem provoca quem.
Se por um lado o Racionais mostra consciência pelo sentimento de pertença, por outro mantém-se ainda subjugado, sim, à ideologia, pois seu ódio o mantém afastado daqueles que considera desiguais, o mantém eternamente no mundo cheio de dificuldades sem elevar o conjunto de sua comunidade. Fica apenas o discurso de ódio, esvaziando-se pelo cinismo daqueles que lucram com seu gênero. Não efetiva-se uma ação.
Antes de se estabelecer o fim das classes sociais, o fim das ideologias, dentro do pensamento teórico pós-moderno, existe a necessidade de que se observe as mudanças correntes no mundo atual e perceba-se que muito ainda se mantém daquela modernidade da luta de classes[5], principalmente o sentimento daqueles que participam de uma sociedade que divide ainda, em um mesmo espaço, carros de meio milhão de reais com crianças famintas, sem seu All Star, pisando em poças de dejetos na periferia.
É isso também que o Racionais diz. Ou o que quer dizer.
DAGNINO, Evelina. Os anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo; Brasiliense, 2004.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
EDER, Klaus. A nova política de classes. Bauru-SP: Edusc, 2006.
[1] Reafirmamos aqui a existência sim das classes sociais, ainda que não mais nos moldes do discurso marxiano mas extremamente dependentes da condição econômica para posicionamento estamental, sem esquecer logicamente de toda a carga cultural que forma cada esfera e sua interação, estes não trabalhados efetivamente por Marx (Eder, 2006)
[2] Sobre o cinismo filosófico pode-se sugerir o trabalho do filósosfo e professor da Faculdade de Filosofia letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Usp, Vladimir Safatle, Cinismo e Falência da Crítica, no prelo.
[3] Equipados através da prática do tuning, na qual personaliza-se a pintura do veículo, seus equipamentos de som, seus amortecedores de acordo com o gosto do proprietário. O tuning é uma forma de manifestação no movimento hip hop.
[4] Entendemos aqui o pertencimento como forma complementar ao de Evelina Dagnino, no qual “o que está de fato em jogo é o direito de participar efetivamente da própria definição desse sistema (político, de cidadania), o direito de definir aquilo no qual queremos ser incluídos, a invenção de uma nova sociedade”. (DAGNINO, p.109)
[5] Vale citar um estudo bastante atual sobre a manutenção das classes sociais em uma outra configuração, em especial somando o econômico marxista ao estamental weberiano, em Eder (2002).