Bandido da lei:
O sujeito da violência para a alteridade do policial
Introdução
Em Notícias de Uma Guerra Particular[1] tem-se um dos poucos momentos, na construção documentária nacional recente, no qual é dado o direito de o policial mostrar sua atividade. Ainda somente sua atividade.
Em geral, o discurso dos documentários brasileiros é permeado por posturas ideológicas propensas a tomar partido daquele considerado, aparentemente, vítima do sistema, o bandido. Dar voz ao marginal, no entanto, sabe-se, é oportuna garantia de atenção do público, em especial dos amantes do gênero documental, fascinados pelo submundo do qual não podem fazer parte (moralmente). Universo sedutor, talvez porque possibilite a saciedade de um desejo recalcado de vingança contra as autoridades, contra as leis, contra o Estado.
É necessário, no entanto, lembrarmo-nos do fato de que o Estado, as leis, seus executores e integrantes são reflexo do pacto social, no qual a sociedade abre mão de inúmeros direitos naturais e, para manutenção da ordem e da civilidade, atribui poder a esferas sociais capazes de acumular o controle do poder, e a punição àqueles que infringem as normas.
Entre esses representantes está a polícia. Ela é espelho do contrato social, no qual abrimos mão do exercício da violência, da imposição da força, para resolvermos um conflito qualquer. À polícia é dado o direito de se armar para que exerça nossa proteção, dever sabidamente do Estado.
Não se quer, no entanto, neste texto, refletir sobre a organização policial, (nem sobre sua organização pelo Estado), mas sim sobre o silêncio do policial, humano, com desejos, frustrações, recalques, medos. Sobre o homem e seu histórico de vida, talvez repleto de sofrimento, mas que primeiramente, por opção (bem como o bandido), preferiu-se servidor público. Este que às vezes, graças a contingências tão duras, se não piores que dos marginais, se vê, também, agindo como marginal. Queremos portanto, quando possível, separar a instituição polícia do homem policial e mostrar que o policial erra quando se torna bandido, mas merece direito a uma defesa dentro de disciplinas que o situe histórica e culturalmente, da mesma forma que o bandido.
É clássico atribuir à polícia inúmeras características negativas. Isso se inscreve, no meio juvenil por exemplo, nas letras de música cantadas prazerosamente; xingam-na no rock, no rap, funk, punk; acusam-na em todas as nações em todos os idiomas; enfrentam-na em situações de repressão à aglomerações e distúrbios. Em jogos de futebol a polícia aparece como um retrato do mal, do aniquilador, do repressor. No entanto cumpre o papel a ela delegado, com ou sem a simpatia de populares. Comete inúmeros excessos, sem dúvida, prevaricando em nome do uniforme, no entanto está sempre disponível para atender quando solicitada, não podendo recusar o chamado, seja qual for.
Quando convidada a falar, o integrante que por ela fala, discursa como se ele fosse a própria polícia. Defende sua postura omitindo inclusive as dificuldades que enfrenta, como quem defende a família, obliterando os problemas domésticos.
1- Policiais enquanto polícia
Num clássico formato de entrevista o primeiro policial a falar no Notícias..., é o cap. PM Pimentel, do BOPE (Batalhão de Operações Especiais do Rio de Janeiro). Se apresenta dentro do Batalhão durante preparação para trabalhar, tentando um ar de informalidade, quase impossível, em especial quando junta em seu discurso a invencibilidade e o medo como elementos comuns ao cotidiano, isso o coloca no patamar de polícia, em distinção ao policial. Frisa estar em uma guerra e admite gostar de fazer parte dela, fala em nome da corporação.
Logo após, a moradora Janete, com um homem sentado ao fundo endossando suas palavras, em tom acusador, agride a polícia como é de praxe (quando se interroga moradores de “comunidades”) -- curiosamente o contraste deve-se ao fato de ela re-afirmar a violência da polícia para na mesma seqüência acusar os policiais de terem medo da “nova geração de bandidos” que, para ela, “querem (sic) defender a comunidade dessa entrada violenta da polícia”. Um contra-senso: é a violência combatendo justificadamente (para o morador da comunidade) o ato violento que vai exatamente em oposição à uma violência inicial do tráfico (tornando a violência, se não um produto ontológico, ao menos um elemento apriorístico do discurso). O bandido, para o morador, serve à comunidade, faz o papel do Estado, e isso é dito por um encapuzado. Esse, curiosamente é discurso do senso crítico atual, que se tornou senso comum inclusive entre as classes sociais mais altas. Se se acreditar na possibilidade, ainda, de algum grau de emancipação humana através da ciência (como as utopias da modernidade), devemo-nos lembrar do fato de que até hoje “o portador da ciência não é o proletariado, mas os intelectuais burgueses”[2], ainda que sob a consciência de suas idéias somente se concretizarem através do povo.
Ao retornar a fala ao policial, novamente ele incorpora o Estado. Fala de métodos de confronto, usando sua linguagem extremamente técnica, procurando atribuir o máximo de eficiência possível à corporação. Eficiência crível, caso na seqüência não surgisse um bandido (não identificado) se vangloriando do foguetório realizado em comemoração a cada policial morto. Essa contradição reflete, portanto, uma tropa forte repleta de homens normais (que morrem) sendo derrubados pelo tráfico, ou a derrota da eficiência.
Quando a entrevista se desloca para o representante da Polícia Civil fluminense, Hélio Lima, ele não somente fala como Estado, mas também procura dar um ritmo quando não sociológico (nas desigualdades), psicologista (na sedução do poder) para explicar a entrada de jovens na “bandidagem”. Desfia seu conhecimento técnico desconstruindo a estrutura do tráfico.
A redundância da fala da polícia (sempre se mostrando capaz) se iguala ao vazio redundante do discurso dos bandidos, que parece dar prazer ao documentarista: de que a polícia só quer bater. Surpreendentemente alguém mascarado acusa a instituição policial de corrupta (paradoxalmente, para o bandido é errado a polícia extorquir!).
Numa sucessão de entrevistas com marginais, presidiários, menores infratores, outra moradora acusa a polícia de abuso, de violência, fazendo coro aos demais queixosos. Na seqüência, Hélio discursa outra vez, em palavras diversas, a eficiência da repressão policial, minimizando números da violência, ou atribuindo sua causa, quando não à própria colaboração da comunidade, a fatores amplamente conhecidos, como a desigualdade social.
Surpresa no momento do flagrante de jovens armados que atiram contra policiais. Câmera nervosa, subjetiva, tenta acompanhar a movimentação, desesperadamente. Rapaz se desentoca, corre por uma laje, salta para um barranco sob uma saraivada de tiros de policiais e bandidos. O clímax parece atiçar o espectador. Para esfriar a “ação opressora”, outro morador acusa a corporação de agressão. Mães acompanham rapazes presos que escalam, escoltados pelos policiais, as vielas do morro, “os garoto pode tá sofrendo alguma agressão”, profetiza uma delas.
2- Dois sujeitos
A entrevista do capitão, quando fala que para cada traficante morto aparecem dois novos, parece minimizada em contraste com a seguinte: um traficante orgulhoso dizendo que depois de matar e botar fogo no corpo de algum inimigo se sente normal. A edição, entretanto, durante o documentário todo apresenta o bandido (sempre escondido) com desenvoltura, e o policial com formalidade. Um é o que pode ser, o outro representa um organismo do Estado e deve ser comedido.
Tem-se aí então um conflito entre sujeitos. O policial fora do contexto documental não é a polícia, é humano, portanto deve ter o direito de agir como humano; na mídia, ser repreendido em seus erros e elogiado por seus acertos. Entretanto registra-se sua fala em nome da polícia, ele se objetiva nela e com isso assume a parcela de culpa que lhe é atribuída, independentemente da postura dele enquanto individuo.
Espera-se do cidadão, seja ele qual for, o cumprimento das leis, e àqueles que não cumpram os protocolos espera-se a punição. Contudo, quando se utiliza o poder de descrever um determinado momento histórico, como é o caso dos documentaristas, dá-se também o direito de o outro se posicionar. O outro da relação polícia-bandido, talvez o maior significante dessa relação, é o policial. A alteridade da polícia é o bandido, e o policial torna-se um Outro da polícia, mas parece não reconhecer isso.
Um significante “é aquele que representa um sujeito para outro significante, ele se constrói enquanto sujeito na significação do outro”[3]. O bandido se constrói na polícia e em sua luta contra a repressão. O documentarista se constrói, nessa relação, entre esses dois significantes. O policial enquanto sujeito da polícia fica desaparecido. O sujeito da ação policial é, para o próprio policial, a polícia. Ele esquece sua própria existência, passa a enxergar-se enquanto corporação. O bandido não enxerga-o também como homem, somente como repressão. O morador o vê como o mal. O documentarista como o Estado. A alteridade do policial acaba por ser ele próprio, em sua solidão. Resumida na frase do representante do Bope:
“A família nem pergunta mais como foi o dia.”
O policial é o humano, a polícia uma instituição. A partir daí deve-se distinguir entre um e outro. O primeiro, da mesma forma que todos os outros humanos, sofrem choram, têm medo, desejos e frustrações, sendo portanto suscetíveis às tentações cotidianas. Da mesma forma que o bandido, deveria ser dado a ele o direito de apresentar-se como humano, com filhos, esposas e mães com esperanças num sucesso que não virá. Não se pede integridade, nem honestidade, não se quer canonizar os agentes da lei, somente se quer reivindicar para eles (já que é dado ao bandido) o direito de ser bandido a partir dos mesmos desejos do outro que se opõe a ele. O bandido é uno, o policial bandido é dois. Um representa o Estado (também corrupto), o outro reflexo da sociedade da qual faz parte, corrupta, violenta, egoísta, mas trajado em sua fantasia de poder.