O cinismo e o ódio
Christian Godoi
1- Sobre o cinismo
Como elemento de economia do discurso o cinismo contemporâneo promove alguns fenômenos lingüísticos aparentes. Enquanto ato de fala, e intencional[1], o cinismo implica inicialmente a condição de sinceridade, o que promove, quando posto em enunciado, uma anulação ou amenização imediata das reações críticas por vir. Tem-se aqui o fato de o cinismo não ser algo tão precisamente definível, mas de imediato excluem-se as exposições enciclopédicas, atendo-se então às seguintes enunciações:
- O cinismo enquanto ação[2] demonstra a impossibilidade da efetivação da moral iluminista. Invoca normas universais enquanto promove sua transgressão particular: “Há de se convir”, explica Zizek[3], “que uma tirada como a de Brecht, na ópera dos três vinténs (o que é assaltar um banco comparado a fundar um) não soa igual nos lábios de um banqueiro, de um bancário ou de um cliente”. Hoje, provavelmente, a frase seria dita sem constrangimento por um banqueiro, que certamente continuará gerindo seus negócios à custa dos outros dois.
- Aponta-se no cinismo uma fuga da moral que pode ser reconhecida nas mais variadas esferas (como no cinismo estético, uma razão cínica, uma retórica cínica ou em outras possibilidades).
- Fugindo da construção dialética hegeliana, que aponta um progresso alcançado mediante o conflito de opostos, o cinismo não opera uma construção, ao contrário, inibe uma reação construtiva, como também crítica, que possa elevar ao “Espírito Absoluto”. O cinismo põe a negação do saber e o saber de algo que é julgado por determinada moral, evitando a dialética donde se estabelece a crítica.
- O cinismo mantém o enunciado independente da enunciação, fato que evita recalque, frustração ou punição pelo superego. Citamos aqui a observação de Adorno quando se refere ao movimento fascista e sua consciência da postura carnavalesca do regime, ainda que se fizesse parte dele. Sua racionalização, dentro da psicanálise, pode ser explicada através de desejos inconscientes ou reprimidos.
- Percebe-se o cinismo como uma enunciação da verdade, que, se não anula a reação a uma ação reconhecidamente errada, ao menos minimiza-a frente a ação discursiva do enunciador.
Tomar-se-ão estes tópicos como diretriz para o desenvolvimento de nossa problemática, percebendo a princípio que em algumas condições pragmáticas na atualidade pode um ato cínico anular outro ato cínico provocando a ineficácia da crítica. Dessa forma, quando o cinismo aparece numa espiral infindável, donde o ato de levar vantagem em tudo parece prevalecer[4], formula-se a pergunta:
Pode um ato cínico maior, enquanto livre ideologicamente, anular um ato cínico menor, proveniente de um pensamento racional cínico, desprovendo-o da crítica intencional fundada no ódio?
2- O ódio subsumido no cinismo provocando a obliteração da crítica
Pode-se num primeiro momento alocar o ódio como produtor de atos críticos perceptíveis em inúmeros movimentos sociais, ideológicos ou religiosos. Aqui, no entanto, a atenção se volta para um movimento proveniente de uma “revolução musical” iniciada com o jazz, o blues e o rock, desembocando em suas mais variadas vertentes, onde nasce o RAP (Rithym And Poetry). Vale reforçar o cinismo como “uma ilusão que incorporou sua própria crítica mantendo-se incólume”.[5]
O ódio encontra-se então inserido no discurso cínico, enquanto o ato é refratário ao ódio que lhe é enunciado. Ódio esse que corresponde a duas expressões psíquicas, como aponta Castoriadis: o ódio do outro e o ódio de si. Para o autor “o indivíduo socializado cuja a forma ela [mônada psíquica*] foi obrigada a adotar, os indivíduos sociais cuja a co-existência ela é obrigada a aceitar(...). Essa estrutura ontológica do ser humano impõe obrigações insuperáveis a toda organização social e a todo projeto político (...) condena irrevogavelmente qualquer idéia de uma sociedade ‘transparente’, qualquer projeto político que vise a reconciliação universal imediata”.[6]
O ato cínico do raper serve-lhe como forma de demonstrar o reconhecimento de uma condição de explorado. Condição essa que lhe permite contra-atacar da forma aparentemente mais razoável dentro de suas possibilidades, o discurso em defesa da ação criminosa necessária como forma de sobrevivência dentro das condições vigentes. O ato cínico que prega a necessidade de um crime para a obtenção de ascensão social, e o justifica pelo reconhecimento de diferenças causadas pela exploração mantém-se dessa forma no discurso ideológico. Isso acontece porque durante o processo de socialização as duas dimensões do ódio (do outro e de si) “são refreadas em um grau importante”, mostra Castoriadis, para ele “isso é feito por meio de uma diversão permanente da tendência destrutiva para fins sociais mais ou menos ‘construtivos’, a exploração da natureza, a competição interindividual de diversas formas”.[7]
No processo de constituição da consciência de si (enquanto excluído), a consciência também constitui os objetos para si (o pertencente ao outro), reconhecendo-os como seus. Ela então se descobre como uma instância que pode desejar apropriar-se dos objetos. Na vida social, por exemplo, isso aparece no desejo do reconhecimento pelo outro, testando assim uma força em relação a ele. Hegel ilustra isso na dialética do senhor e do escravo:
“O senhor é senhor porque é vitorioso e assim realiza seu desejo de ser reconhecido como tal pelo escravo, sobre o qual tem o poder de vida ou de morte. Mas a relação senhor-escravo é, como toda relação, dinâmica e o escravo não é um elemento meramente passivo. É a consciência do escravo que reconhece o senhor como tal; este, por isso, necessita do outro para afirmar-se e se manter como senhor. O escravo, dependente em princípio do senhor, torna-se senhor da consciência de seu próprio amo.”[8]
Daí aparece uma liberdade subjetiva que somente pode ser desfrutada graças a dominação do outro. Entretanto deve-se lembrar da diferença, ainda que tênue, existente entre o cinismo e a dialética: a segunda pressupõe o antagonismo como força para elevação até o Espírito Absoluto; o primeiro anula qualquer reação.
Seguindo o raciocínio anterior, põe-se o discurso do raper não como uma demonstração de cinismo, e sim como dialética. Isso não anula o cinismo intencional[9], nem como impede que seja revista as proposições do autor no momento de sua composição. O raper quer o cinismo, intenciona mostrar em seu discurso os males do crime, entretanto não dispensa explicá-lo, como se dissesse: não cometa o crime, veja as dificuldades na cadeia, mas se você resolver cometê-lo veja como começar, ou onde não pode errar. Ambas intenções, tanto a dialética quanto o cinismo estão presentes portanto no RAP.
Em um segundo momento observa-se a necessidade de essa justificação ser dirigida ao outro, ao qual se quer ferir e justificar o motivo pelo qual este é ferido. Para que esta ação tenha efeito o seu discurso deve atingir seu objetivo, chegar às classes mais altas (conforme são apontadas nos discursos), ser compreendido e provocar uma reação, seja de revolta, seja de comoção ou somente de um incômodo desconfortante. Para isso utiliza-se um caminho comum: os media. E é através deles que este ato passa a se anular.
Numa outra esfera de valores está o sujeito objetivado pelo raper. Os indivíduos de classe mais alta incorporam o discurso agressivo em seu próprio discurso, apropriam-se de gírias, gestuais, expressões, modas, enfim, o ver, o perceber, o escutar o outro até então demasiadamente assustador começa a ser percebido dentro da própria esfera, onde o jovem de classe média passa a representar uma personagem semelhante.
Entretanto, mais significante parece ser o fato de o discurso sofrer alterações ao longo do tempo para poder ser reproduzido mediaticamente. A partir do momento em que esta modificação acontece, e depois de o ato cínico do raper e seu movimento como um todo ter sido incorporado aos cotidianos das classes médias, fica claro que não só o jovem da periferia necessita do outro para promover seu protesto, como o classe média ao incorporar essa “cultura” hip hop acaba por anular seu efeito ideológico inicial, componente do ódio. E, como se não bastasse, ainda promove o autor da obra a uma posição hipócrita fazendo-o galgar um degrau acima de seu nível de pobreza e, inúmeras vezes excluindo-o de seu meio, sob o rótulo de traidor.
Chega-se ao ponto de que a verdade é a mentira:
“O mentiroso chama o mentiroso de mentiroso”[10]
O discurso do raper passa por mentiroso em sua comunidade, e os que dele se apropriam para simulação de tendências passam a imperar, só que sob a sombra do discurso que os combate.
É possível observar que as subjetividades são seduzidas por uma satisfação libidinal. É o prazer na manipulação do semelhante. Passa-se do sintoma do sujeito para o sujeito do sintoma. A partir daí pergunta-se quem manipula quem, quem é o senhor, quem é o escravo?
“Os vínculos daqueles que a gente chama de exploradores não deixam de ser vínculos de servidores em relação ao conjunto da economia, tanto quanto o são do homem comum. Assim, a duplicidade senhor escravo está generalizada no interior de cada participante de nossa sociedade”. Lacan, o seminário livro 3, as psicoses. Rio: J.Zahar, 1983, p.154
3- Ódio como fonte de prazer
Fica claro, através das abordagens anteriores que o cinismo nasce com a linguagem, tem a função de anular a crítica ou justificar atos errados de forma a minimizar seus erros. Qual, entretanto, seria a causa em si para a formulação do ato cínico? Poder-se-ia partir da vontade de poder nietzscheana, e, a partir daí discursar sobre a questão ontológica do poder como elemento que se encerra em si.
No entanto observa-se uma vontade superior à de poder neste início de século XXI: a vontade de prazer. Prazer este que renasce nas descobertas neurocientíficas recentes onde se pode observar como a química do cérebro nos leva à busca constante ao vício do prazer como sensação de satisfação para a vida. Antes, no entanto, não deveria ser esquecido o principio do caminho percorrido por Nietzsche para formular sua filosofia: a consciência da morte, que enche a vida de tristeza, dentro do discurso de Schopenhauer[11].
Com efeito, se se tomar o prazer como primeiro elemento da satisfação da necessidade humana ( o prazer oral por exemplo), ver-se-á o primeiro aspecto donde abordar o cinismo. Ódio é oposição a um outro poder, que não necessariamente do amor. Ódio se opõe ao Outro que deseja-se ser/ter, e que entretanto não pode ou não consegue; é desejo também de eliminar o Outro para permanência dos iguais. Ódio é simplesmente uma oposição nascida de um desejo, de uma vontade. O poder nos levaria à sua concretização, donde, com a conclusão do ato de ódio ele não mais existiria, dando lugar ao prazer, que aparece enquanto causa e efeito de uma ação odiosa, onde está incluído o cinismo ainda racional/ideológico.
Quando a vontade de poder é satisfeita de outras formas, que não necessariamente através da obtenção de poder, mas sim a partir de uma satisfação da vontade de prazer e resulta na sua conquista -- ainda que imediata[12] e possível de ser obtida através de um ensimesmamento do sujeito sem que ele abra mão de sua individualidade, onde ele pode se manter incógnito -- ; quando essa vontade de prazer se dá em uma esfera onde a crítica deixa de existir, em princípio por causa da exclusão da moral, pode-se então satisfazer o prazer sem questões ideológicas, mas sim com elementos que detonem o coquetel químico do cérebro que mais e mais se torna um vício, donde desde os mass media até a necessidade de consumo exacerbado acabam por minimizar a ação do ódio cínico dos idealistas.
Explica-se: a busca pelo prazer na sociedade mediatizada, por exemplo, implica no acesso aos mass media ou às novas tecnologias, não somente como forma de inclusão social, mas como forma de obtenção de prazer sem que seja punido por qualquer que seja sua opção, pois todas estão disponíveis em alguma esfera da comunicação – o que não ocorre na comunicação intersubjetiva, onde a “política” inibe desejos.
O ódio aos seus contrários também está implícito nessa negociação com os media, entretanto não é necessariamente anunciado, mas também é fonte de prazer ao ser conquistado. Para que essa conquista se realize sem que hajam conflitos entre as partes envolvidas no diálogo, o cinismo nasce como forma de aplacar o discurso contrário à satisfação do prazer: a pedofilia, tão permanente ao longo dos discursos literários, tão comentada positivamente, como arrojo autoral, na década de setenta por inúmeros críticos[13] hoje é objeto de uma nova moral, como se, dessa forma, pudessem obliterar o ato pedófilo com o encarceramento do astro pop Michael Jackson. Entretanto continua a venda de romances repletos de protagonistas “maníacos”, sem nenhum pudor.
Epílogo
O grito do “gueto”, da periferia, se difere na forma no momento em que ele é compreendido pelo outro lado, ao qual se objetiva atingir. O grito de ódio se transforma apenas numa rebeldia romântica, onde homens rudes, maus, arrancam princesas de casa; e de outro lado, playboys “pegam” mais facilmente as “cachorras”, quando se comportam como bad-boys. O problema não está no cinismo somente, está na falta de credibilidade dos desejos que se buscam. Quando na realidade, ao que parece, só se deseja no hoje o prazer. Venha como vier.
[1] Demonstra Searle que o “conteúdo Intencional deve ser um aspecto causalmente relevante e deve exemplificar uma regularidade planejável” (Searle, John. Intencionalidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 193)
[2] De forma curta, Searle inicia o capítulo sobre intenção e ação explicando que a intenção é satisfeita “se a ação representada pelo conteúdo da intenção de fato vier a ser realizada”. (idem, p. 112)
[3] Zizek, Slavoj. Ils ne savent pás ce qu’ils font. Paris: Oint-hors-ligne, in: Goldenberg, Ricardo. O círculo cínico ou caro Lacan, por que negar a psicanálise aos canalhas? Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, p. 15.
[4] Com efeito, se a ideologia é a falsa consciência dos indivíduos de uma determinada classe sobre as razões que os movem, como aponta Marx, o cinismo pode ser determinado como uma falsa consciência ilustrada que não será afetada por nenhuma crítica ideológica, segundo Sloterdijk.
[5] Goldenberg, op. cit, p. 16
* Para Castoriadis a mônada psíquica é o “narcisismo primário: o fechamento representacional afetivo e desejante de si mesmo do nó psíquico original”. (Castoriadis, Cornélius. Figura do pensável. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p.252)
[6] Castoriadis, Cornélius. Figura do pensável. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 261.
[7] Idem, ibidem, p. 261.
[8] Abrão, Baby e Coscodai, Mirtes. História da filosofia. São Paulo: Best Seller, 2003, p. 350, 351.
[9] Searle, John. Intencionalidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
[10] Sloterdijk, p. 1983.
[11] Sobre a questão do pessimismo consultar Brum, José Thomaz. O pessimismo e suas vontades. Rio de Janeiro: Rocco 1998.
[12] (Além de pequena, infinitamente menor e menos intensa que propõe o gozo freudiano. Mas não menos desejado.
[13] Como nos mostra Guilleubaud. La tyrannie du plaisir. Paris: Edition du Seuil, 1998.